Bartolomeo Scappi (1500 – 1577) foi
um cozinheiro de intensa capacidade, mas, sobretudo, visionário e predecessor
de muitas técnicas modernas de cozinha. É curioso notar como alguns
particulares da sua vida permanecem ainda misteriosos, e as poucas informações
que temos a respeito dele, partiram exatamente das páginas de sua obra. L’Opera dell’arte del cucinare, um dos
mais completos livros de Gastronomia do século XVI.
Relativamente ao seu nascimento,
não é possível precisar a data de seus natais com exatidão. Tampouco a sua
origem geográfica: alguns estudiosos supõem que ele tenha nascido na cidade de
Bolonha, outros em Veneza e outros ainda, na cidade de Varese, norte da Itália.
Calcula-se que deva ter nascido no início do século XVI, e que tenha falecido
por volta do ano 1570. Scappi prestou serviços a personagens importantes de seu
tempo, destacando-se entre eles o Cardeal Lorenzo Campeggi (1474 – 1538), Papa
Paulo III (1468 – 1549) e Papa Pio V (1504 – 1572). Desse último personagem,
ele nos fornece na Opera, a descrição
do rico banquete de entronização, afirmando, mais tarde, e no próprio
frontispício do livro, ter sido cuoco
segreto, cozinheiro particular de Sua Santidade. Paradoxalmente, o livro é
dedicado ao seu último patrão, Pio V, cuja inapetência lhe deu bastante
trabalho. Empenhado em defender a ferro e fogo a fé cristã, ocupara o cargo de
inquisidor geral no pontificado anterior.
Eleito Papa, continuou a ser
extremamente rigoroso, a ponto de proibir os médicos de curarem os pacientes
que não se confessavam. Levava vida austera, fazia demorados jejuns e
abstinências, observava um regime alimentar frugal, caso raro entre os
ocupantes do trono de São Pedro na época. Apreciava caldo ralo de carne e sopa
de urtiga. Mas era o Papa que a Igreja Católica necessitava, para enfrentar a
reforma protestante, as críticas dos dissidentes e reconquistar a confiança dos
fiéis. Graças à disciplina ascética, subiu aos altares com o nome de São Pio V.
Em compensação, um de seus antecessores, Paulo III, só deu alegrias ao chef
Scappi. Glutão assumido, elogiava sua arte e estimulava o desenvolvimento de
novos pratos.
Sua atividade teve grande êxito a
ponto de lhe render honrarias e estima da nobreza. E falar de Scappi é falar da
sua Opera, exatamente por se tratar
de um trabalho literário imponente, que se divide em seis volumes, cada um
dedicado a um tema específico. Na obra encontram-se soluções técnicas para o
setor da restauração, além, é claro, de ensinamentos básicos de cozinha,
descrição de pratos, técnicas exclusivas relativas à conservação de alimentos,
detalhes para preparar banquetes, e pela primeira vez na historia da literatura
gastronômica, as primeiras sugestões de cozinha especifica para pessoas
enfermas e convalescentes, noções básicas de cozinha dietética e elementos de
higiene.
Scappi, sobre esse aspecto, pode
ser considerado um verdadeiro precursor da “cozinha saudável”, intuindo que a
qualidade de vida é resultado, dentre outros fatores, de uma dieta controlada e
balanceada, e que o ambiente onde é manipulado e preparado o alimento deve ser,
no limite do possível, limpo e arrumado. Do ponto de vista técnico,
especificamente, foi um verdadeiro profissional: utilizou pela primeira vez na
Europa os produtos então recém chegados da América e também inventou soluções
técnico-práticas que ainda são utilizadas pelos profissionais das cozinhas no
mundo de hoje, como os empanados, os enfarinhados, e o ato de selar as carnes
brancas e vermelhas antes de seu cozimento.
No que concerne às receitas
contidas na Opera, assistimos a uma
substancial inovação em relação à cozinha medieval. Se por alguns aspectos, na
Idade Média era tendência preferir as carnes de caça, especialmente as
emplumadas, Scappi sugere em seu manual o uso de carnes de criação, como
frangos, bovinos e suínos. Percebemos o esforço do mestre em tornar a cozinha
mais leve do que aquela praticada na Idade Média, driblando, inclusive, as
severas restrições religiosas. Como afirmam os estudiosos Sabban e Serventi, a
Igreja católica continuava a impor ao mundo a alternância de cardápios “di
grasso e di magro”, ou seja, a estabelecer os dias nos quais a dieta era livre
e os respectivos períodos de jejum e abstinência, nos quais os fiéis estavam
proibidos de comer carne; falamos de todas as sextas-feiras, na véspera das
festas religiosas importantes e durante as quatro têmporas, ou seja, nos dias
em que se iniciam as estações do ano.
A solução foi encontrar produtos
substitutivos. Daí o grande número de pratos à base de massa, pão, peixe,
amêndoa, noz, manteiga, mel e especiarias, cujo uso, sobretudo nas cortes,
também era sinal de status. A primeira diferença entre um banquete principesco
e um plebeu consistia no emprego generoso de noz-moscada, cravo-da-índia,
pimenta-do-reino, canela, gengibre. Essas e outras especiarias perfumaram intensamente
as elaborações dos chefes importantes. No seu livro, Scappi dá a receita de sua
mistura pessoal, na qual incluía uma pimenta chamada de grana paradisi. Outra característica da cozinha renascentista foram
os molhos leves, geralmente à base de plantas ou frutas aromáticas, como limão
e laranja, ligados com miolo de pão. A utilização da farinha de trigo só
aconteceria na Itália a partir do século 18, por influência francesa.
O sabor agridoce, tão amado na
Idade Média, continuou a fazer sucesso. O mesmo sucedeu com os grandes assados,
os pavões, os capões recheados, as caças de pena e as aves domésticas.
Apareceram ou consolidaram sua presença na mesa renascentista as massas
recheadas, sobretudo os tortelletti e
os ravioli, bem como as massas de fio,
uma das quais aparentada com os gnocchi
e denominada strozzapreti, palavra
que traduzida para o português significa estrangula padres. Um cozinheiro
irreverente e bem-humorado a batizou com esse nome. Seria uma referência à
lendária gula dos sacerdotes. Porém o próprio Scappi se mostrou respeitoso,
chamando os strozzapreti de gnocchi.
Além disso, procurou atenuar a rusticidade da receita acrescentando à massa
algumas gemas de ovos
Devemos pensar a Bartolomeo como um
grande inovador da gastronomia de seu tempo, e, de fato, o seu trabalho
literário mereceu amplo consenso, e foi levado em consideração por muito tempo.
Mais tarde, na segunda metade do século XVII, ocorreu uma inexorável, mas
contínua involução da cozinha italiana, rebaixada pela gastronomia francesa em
franca ascensão.
Compreensivelmente, a obra de
Scappi teve enorme repercussão na Europa. Foi copiada e plagiada. O espanhol
Diego Granado, por exemplo, transcreve-a literalmente no Libro del Arte de
Cocina, em 1599, sem lhe fazer qualquer menção. Também na Alemanha, em 1581,
Max Rumpolt plageia a obra de Scappi dando-lhe o título de Ein neues Kuchbuch, como nos lembra Roy Strong.
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