Reproduzo aqui um texto de J. A. Dias Lopes publicado em 2007, no Estado de São Paulo. Acrescento algumas imagens sobre o tema, algumas das minhas preferidas.
(Paolo Veronose - 1560)
"O Novo Testamento conta que Jesus, antevendo a morte, convocou os 12 apóstolos para sua última ceia. A cerimônia coincidiu com o Seder, celebrado no primeiro dia do Pessach, a Páscoa hebraica, que inclui uma festiva refeição à noite. Sendo judeu, o fundador do cristianismo quis comemorá-la, atribuindo-lhe significado especial. O Novo Testamento não fornece grandes detalhes, mas se supõe terem sido respeitados os ritos tradicionais e a habitual recordação do Êxodo (saída dos hebreus do Egito). Na última ceia, Jesus predisse a traição de um dos apóstolos, Judas Iscariotes, e instituiu o sacramento crucial da Eucaristia. O acontecimento supremo foi descrito nos Evangelhos de São Mateus, São Marcos e São Lucas. São Paulo também se refere a ele na Primeira Epístola aos Coríntios. São Lucas conta que Pedro e João foram incumbidos de organizá-la. Não há referência sobre o endereço, em Jerusalém, no qual transcorreu a derradeira refeição de Jesus. Lucas diz apenas que foi em uma grande sala mobiliada, localizada no andar superior de uma casa. Entretanto, a tradição dos ortodoxos sírios sustenta ter ocorrido na casa da mãe de Marcos, uma das seis Marias citadas no Novo Testamento. Atualmente, ergue-se no lugar a Igreja de São Marcos, nas imediações da Porta de Jafa.
Na última ceia, os apóstolos dividiram alimentos da liturgia judaica: ervas amargas para relembrar o sofrimento causado pela escravidão do povo hebreu no Egito; pão ázimo, em memória da saída dali; e carne de cordeiro. O Novo Testamento fala seguidamente nos ingredientes da época. Refere-se aos alimentos cotidianos da população, ao pão, aves, peixes, vinho e mel; ao leite e seus derivados; aos cereais, legumes, verduras e frutas. Informa que o consumo das carnes bovina e ovina se dava principalmente em dias de festa, como no Pessach, e com maior assiduidade nas mesas das pessoas abonadas. O Velho Testamento faz a mesma coisa. Os dois livros chegam a apontar pratos específicos: o pão de Ezequiel, o bolo de cevada, o guisado de Esaú, o cordeirinho assado, o novilho cevado. Mas omitem as receitas. A dificuldade não impediu que pesquisadores como a israelense Ruth Keenan, uma especialista em gastronomia histórica, autora de duas obras importantes (La Cuisine de la Bible e 2000 Ans de Festins, ambas publicadas pela Éditions de La Martiniére, de Paris, respectivamente em 1995 e 1999), conseguissem imaginar receitas bíblicas. Fundamentaram-se, sobretudo, em investigações arqueológicas, na história da agricultura e da alimentação do Oriente Médio, a região da Terra Santa, em comentários bíblicos e, notadamente, nos subsídios fornecidos pela Mishná. Esse conjunto de leis hebraicas aprimoradas durante séculos pela tradição oral e codificadas pelo rabino Judah Ha?Nasi entre os anos 200 e 220 da nossa era ofereceu-lhes preciosos subsídios sobre a culinária bíblica.
(Jacopo Bassano - 1542)
Em 2000 Ans de Festins, Ruth Keenan apresentou o provável cardápio da última ceia: peixe em molho agridoce; paleta de cordeiro com ervas e pinoli (dois adereços que, na receita ilustrativa deste texto, substituímos por frutas e especiarias); salada de aipo e ervas amargas (raiz-forte, chicória, alface); compota de frutas secas ao mel. Enfim, foi uma refeição típica do Seder. Ao mesmo tempo, Ruth Keenan reconstituiu os hábitos alimentares dos contemporâneos de Jesus. "A população tinha o costume de comer duas vezes por dia", assinala. A primeira era o desjejum, um pouco antes do meio-dia; a última, um jantar mais substancioso, no final da tarde. Evidentemente, a comida variava conforme as posses de cada um e da povoação onde vivia. As principais comunidades hebraicas estavam em Jerusalém, Judéia, Galiléia e aldeias em volta do lago Tiberíades. Exerciam variadas atividades. Em Jerusalém, por exemplo, e sempre conforme Ruth Keenan, atuavam no comércio, nas condições de donos ou empregados, ou eram funcionários civis e religiosos. Na Galiléia, dedicavam-se à pesca, agricultura ou pequeno artesanato. Como a humanidade ainda desconhecia a refrigeração e outros métodos de conservação dos alimentos, saboreavam-nos frescos ou, então, depois de curtidos em sal ou defumados.
(Francisco Henriques - 1508)
Em outro livro, Receitas Inspiradas na Bíblia (Companhia Melhoramentos, São Paulo, 1996), os pesquisadores ingleses Naomi Goodman, Robert Marcus e Susan Woolhandler ressaltaram o elevado teor nutritivo da comida do Novo e Velho Testamentos. Seguia as recomendações da dieta moderna. Todos os pães e pratos à base de cereais incorporavam grãos integrais, triturados em moinhos de pedra. "Portanto, a alimentação era rica em fibras", enfatiza o trio. Os derivados do leite - iogurte, ricota e queijo - tinham largo consumo. Legumes e verduras desfrutavam de idêntico prestígio. Frutas frescas eram muito consumidas pelas crianças, jovens e adultos. Purês ou ensopados de passas de uva e tâmara originavam molhos para pratos de sal e adoçavam sobremesas, substituindo ou complementando o mel. No dia-a-dia, aves e peixes ocupavam o lugar das carnes bovina e ovina. Alimentação mais saudável, impossível."
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